26.9.08

Pequeno manual de autoconhecimento para turistas

Todo mundo pensa que não paga vale de turista. Que viaja por aí sem ser notado, mesclado com a multidão. Que só porque não usa camisa floreada, câmera pendurada no pescoço e sandália de apóstolo não se encaixa no perfil. Essa lista tem o objetivo de provar que, por mais cool que se queira parecer, basta viajar para pagar mico de turista. Atire o primeiro Guia 4 Rodas quem nunca praticou nenhuma das ações listadas abaixo.

1. Abrir mapa no meio da rua. Você passou uma semana estudando o mapa da cidade, sabe de cor os pontos turísticos e todas as ruas que levam até eles. Ainda assim, não há dúvida: você vai se perder. É chegado o momento tão temido por todo turista cool, o de abrir mapa no meio da rua. Mas não seja orgulhoso. Admita que é humanamente impossível situar-se sem um mapa numa cidade que você nunca viu na vida. Tática muito comum e com alto nível de fracasso é tentar olhar o mapa sem tirá-lo da bolsa. Você desiste e, para não perder a pose, busca um canto qualquer em que possa descobrir discretamente onde diabos você está, sem dar bandeira de que está perdido. Tarde demais. Alguém já bateu no seu ombro perguntando: quenairréupiu?

2. Tirar fotos que todo mundo tira. Ser turista não é só ir aos lugares que todo mundo vai, mas acima de tudo não ter muita imaginação fotográfica. Por algum motivo misterioso, é irresistível tirar fotos de braços abertos no Cristo Redentor e apoiando a Torre de Pisa. Isso pra não citar tudo que é possível fazer com a Torre Eiffel.

3. Tirar fotos que ninguém tira. Você precisa justificar o cartão de memória de 5 Gb que comprou para a sua câmera, não é mesmo? Além do mais, só o turista acha absolutamente tudo interessante. Aquela parede descascada não é só uma parede descascada - é uma parede descascada do sul da Croácia! Mas, fique atento. Em momentos como esse, surge um personagem muito comum entre os turistas: o ladrão de idéias de fotos. Quando você guarda a câmera satisfeito, convencido de que é a única pessoa do mundo a ter feito uma foto tão criativa, olha para o lado e vê que um turista japonês acaba de roubar a sua idéia. E o que é pior, com uma câmera muito melhor do que a sua.

4. Comprar souvenir. Ser turista é também ser um pouco exibido. No fundo, no fundo, o que você pretende com aquele brinco de pena de tucano e aquela camiseta “Eu amo Porto Seguro” é provar que no feriadão você esteve mesmo na Bahia, e não em Rainha do Mar.

5. Perder a classe por causa da fome. Todo mundo sabe que praia dá uma fome do cão. Mas o turista é um sujeito cool, relax, que está acima das triviais necessidades do corpo. Cuidado. Esquecer que se tem estômago e errar no planejamento das refeições é o primeiro passo para o declínio da elegância. Depois de comer três modalidades de picolé, você sai correndo da praia com os olhos esbugalhados e entra de chinelo no primeiro restaurante metido a besta com mesa liberada que encontra (porque os mais baratos têm fila na porta). Quando você chega, todo mundo percebe o seu desespero contido, cobiçando sorrateiramente o prato alheio. Quando sai, nem se dá conta de que deixou um rastro de areia no buffet e a marca da bunda molhada na cadeira.

6. Crer piamente que o inglês é a língua universal. Você fez 4 anos de Yázigi, sabe até conjugar os verbos no pretérito mais-que-perfeito e resolve passar as férias na Europa. Desembarca na Espanha e descobre que lá há quatro línguas diferentes - e que você é que vai ter que aprender a falar o dialeto local para ser entendido. Na França, felizmente, todos sabem falar inglês - mas não querem, não gostam, não estão a fim. Sua única saída, então, é ir pra Londres - mas chegando lá é barrado na imigração, e depois de passar 18 horas numa salinha 2x2, sem comer, é deportado. Afinal, você falava muito bem o inglês e eles desconfiaram: você só podia estar buscando trabalho.

7. Ter cara de turista. Você pode não perceber, mas o seu caminhar lento, seus lábios ligeiramente abertos e sua indisfarçável curiosidade por tudo ao seu redor bastam para entregar que você é um turista. Sua expressão corada e satisfeita às 10 da manhã de uma segunda-feira, altamente contrastante com as olheiras dos trabalhadores locais, também é uma indiscutível evidência da sua vergonhosa condição de turista feliz de férias.

8. Obstaculizar o cotidiano alheio. Por mais que você se esforce para ser simpático, é preciso encarar essa dura realidade: turista incomoda. O turista exibe um desagradável comportamento que tranca ruas, tira a fluidez natural das escadas rolantes, entope saídas de metro, entradas de restaurantes, calçadas estreitas, corredores de ônibus, e é dono de uma sensibilidade artística que o enraíza em frente a obras de pintores famosos nos museus. O turista empacado e sem pressa é o pesadelo de qualquer pessoa produtiva e com horários. E ele ainda vai embora dizendo que gostou muito da cidade, mas que o povo de lá, infelizmente, é muito estressado.

6 comentarios:

Manoela Sawitzki dijo...

QUE MARAVILHA!!
Adorei a parte que fala dos lábios entreabertos e a expressão corada e satisfeita numa manhã de segunda-feira!
E a parede descascada do sul Croácia!!?!!

Quantas dessas há de ter em Ouro Preto? hein? hein? hein?!!!!

(aliás, que liiinda essa bandeira nova do blog! são azuleijos quebrados do norte da onde mesmo?!)

danissanti dijo...

Hola corazón!
Por falar em saudade, onde anda você?
O mosaico aí de cima é um legítimo Gaudí, raptado do Parc Güell.
Falta tão pouco para Ouro Preto, verdad? Não vejo a hora de obstaculizar o cotidiano dos mineiros. :-P
Smack!

Eliandro Ramos dijo...

Isso é demais! Ri de maneira deliciosa!
As pessoas perdem tanto tempo apontando os estigmas clichês que não se dão conta que podem viver um estigma como este.

danissanti dijo...

:-)

Unknown dijo...

Lindo texto (como sempre!), divertidíssimo. É, quem viaja pode até tentar, mas é impossível escapar do estigma... As pessoas locais muitas vezes se enganam quanto à procedência do turista (como o policial que falou comigo em inglês em Salvador -- e olhem que eu estava com trancinhas rasta!!), :-) mas jamais se enganam ao identificar um não-local. Valeu, Dani!

danissanti dijo...

Ah, saudosa Bahia!

Pues... lá tu é sueca, minha nega...

Beijo, tou chegando!