15.12.08

Diário de viagem - III

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Terça-feira, 11 de novembro de 2008, 23h30

- Vocês estão procurando uma cachaçaria?

De fato, nós estávamos em busca de uma cachaçaria. Nós éramos, aliás, duas turistas em Ouro Preto procurando uma cachaçaria no meio da noite. Alguém no bar em frente havia dito: “nessa ruazinha aqui tem uma”, e quando estávamos a dois passos de entrar na tal cachaçaria, alguém gritou “Ei!” e veio correndo na nossa direção. Era baixinho, moreno, e tinha cabelos na altura do ombro.

- Eu conheço uma cachaçaria ótima! Posso levar vocês até lá.

Eu olhei pra Manu desconfiada, mas ela me olhou com curiosidade.

- Não precisa, não. A gente vai nessa aqui mesmo. Obrigada – eu disse, sorrindo polidamente.

- Mas a outra é bem mais legal. E é aqui pertinho. Eu levo vocês lá, vamos!

Olhei pra Manu com cara de “nem pensar”, mas ela me olhou com cara de “ué, de repente”.

- A que distância fica daqui, mais ou menos? – perguntou Manu, interessada.

- Ah... uns 100... 200 metros...

Fiz cara de “parece longe”, Manu de “parece perto”.

- Vamos, meninas! Vocês vão gostar!

Manu me olhou.

- Vamos?

Eu não queria ser antipática com moço tão solícito, nem anti-social na nossa primeira noite em Ouro Preto. Mas algo me dizia que nós não estávamos num filme do Woody Allen, não éramos duas americanas em Barcelona, e o rapaz, definitivamente, não tinha o poder de persuasão do Javier Bardem.

- Ok. Vamos. – eu disse.

E fomos. Ele se apresentou como “Joker Índio, o poeta de todas as ruas” e começou a falar euforicamente. Duas quadras depois, já estava recitando suas poesias (“que o nosso amor se eternize / nas suas varizes!”, declamava empolgado), e a gente ria, balançando a cabeça como quem diz “que figura, hein”. E fomos descendo, descendo, passamos por uma igreja do Aleijadinho, outra igreja do Aleijadinho, depois um cemitério, e as ruas foram ficando escuras e desertas, e mais escuras, e mais desertas, então eu comecei a interromper o falatório de Joker Índio numa mescla crescente de nervosismo/irritação: falta muito? onde é, afinal? logo ali onde??? ONDE???

Mas Joker Índio sorria confiante, situação dominada.

- Não se preocupem, meninas... Eu sei, vocês agora devem estar pensando naquele motoboy que matava mulheres em lugares escuros... Mas, ó, eu sou de confiança! Fiquem tranqüilas...

Ah, claro que ele é de confiança, pensei. Ele nunca diria que não é de confiança. Eu não havia pensado no tal motoboy, mas agora estava pensando, e muito. Prestes a penetrar com minha amiga e um desconhecido em mais um trecho escuro de mais uma ladeira, eu estaqueei.

- Manu, quero voltar.

Por sorte, Manu me olhou com cara de “eu também, eu também!” e consentiu na mesma hora. Mas Joker Índio se negou a aceitar a idéia.

- Mas mas... é logo ali! Falta tão pouquinho agora... Vamos!

- Olha, Joker Índio – eu disse, reunindo todo o meu tato diplomático – valeu a boa vontade, foi muita gentileza sua nos acompanhar, mas a sua cachaçaria é muito longe, e nós vamos voltar. Tchau.

- Nãããão! Não façam isso... Vamos, por favooor!

"Por favor"? Joker Índio parecia ter uma baixíssima tolerância a "nãos", mas "por favor" já era demais. Fui obrigada a dizer-lhe algo horrível. Olhei fundo dentro dos seus olhos e falei:

- Não insista.

Ele seguiu, inconformado, ladeira abaixo. Nós voltamos, apavoradas, mas vivas, Ouro Preto acima.


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8.12.08

Diário de viagem - II

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Sexta-feira, 28 de novembro de 2008, 14h30

- Embarque imediato pelo portão 8.

Lá vou eu outra vez. O filme que eu já vi, sendo reprisado na Sessão da Tarde da minha vida. A história se passa diante do portão de embarque do Aeroporto Salgado Filho. Gênero: drama. Participação especial da minha família. Essa doce criatura de pouco mais de um metro de altura, que sempre me abraça primeiro e por último, é a minha sobrinha. Esse bebê lindo que ganha beijos dormindo é o meu sobrinho. A que me abraça muitas vezes é a minha mãe. A que sempre me faz chorar, minha irmã. E não confundam: o que me abraça sério e forte é o meu pai; o que sorri e abraça suave é o meu sogro. Minha sogra é a que fala, sorri, quase chora, abraça suave, forte, tudo ao mesmo tempo.

Lá vou eu outra vez. Sozinha dessa vez. “Dá licença, por favor?”, alguém suplica, pois eu estou atravancando a porta de embarque. Abaixo pra falar com minha sobrinha, lhe dou beijos, conselhos, coma bastante, viu, estude, cuide bem do seu irmão. Ela dá tapinhas nas minhas costas e diz: “Tá bem, Dani. Agora vai, senão tu vai perder o avião.”

Lá vou eu. Outra vez. Para o embarque imediato pelo portão 8. O filme está acabando. A câmera enquadra a protagonista olhando pela janelinha. Uma lágrima escorre devagar. Sobe trilha.

Agora passa a paisagem
Agora não me despedi
Agora compro uma passagem
Agora ainda estou aqui


O avião toma velocidade e eu leio pela última vez PORTO ALEGRE. Fim.


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3.12.08

Diário de viagem - I

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Sábado, 29 de novembro de 2008, 17h

- Feestelijk inhalen aan Barcelona.

Era o comandante holandês da KLM dando as boas-vindas à cidade. Depois de sobrevoar o Mediterrâneo baixo demais pro meu gosto – apesar da belíssima vista de Barcelona que isso proporcionou a nós, passageiros em pânico – ele fez uma aterrissagem que, sem sombra de dúvidas, foi a pior pela qual já passei. Pousou meio de lado, as rodas tocaram o chão num estrondo, o ruído aumentando enquanto a aeronave tentava ser freada, aparentemente sem sucesso. Foram apenas alguns instantes, mas a diversidade de reações que brotaram de dentro de mim foi incrível: num segundo me apavorei, no outro procurei manter a calma; no outro resolvi checar só por garantia o comprimento da pista de pouso, no seguinte me agarrei tremendo à poltrona; na seqüência rezei, sei lá, pra Nossa Senhora Protetora dos Groovings e, por fim, pensava: “Essa merda não vai parar nunca, porraaaa?”.

Parou. No limite da pista, mas parou. Olhei pela janelinha do avião e vi ali escrito BARCELONA. Do canto esquerdo do olho direito escorreu uma lágrima, porque essa coisa de viajar me deixa sempre muito sensível. Corri pra esteira e peguei minha companheira obesa. Eu havia rezado muitas vezes para que ela não se perdesse de mim ao longo dessa viagem. Foram tantos lugares, ônibus, porta-malas, aeroportos. Minha última oração havia sido dedicada à Nossa Senhora dos Nada-a-Declarar, para que não cismassem comigo em Amsterdam e eu não precisasse em hipótese alguma abrir a mala, pois até feijão e goiabada tinha lá dentro (presentes irrecusáveis de minha mãe), fora a farmacodiversidade de causar sérias suspeitas em qualquer Setor de Imigração. Cápsulas e mais cápsulas de fitoterápicos, homeopatias, soluções hidroalcoólicas, remédios pra isso e remédios praquilo entre pacotes de feijão e goiabadas do Zaffari – como explicar essa mala de feirante hipocondríaca, em bom inglês, a um holandês loiro e alinhado?

Saí porta afora ansiosa, tentando reconhecer um rosto, apenas um rosto na multidão. Veio? Não veio? Atrasou? Onde está? Ali: sorriso maroto no rosto, casaco grosso de lã e um cartaz na mão escrito NEGUINHA. Tinha até esquecido como ele era alto e engraçado.


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Sábado, 29 de novembro de 2008, 11h15

- Feestelijk inhalen aan Amsterdam.

Tive sorte. Foram 10 horas de vôo entre São Paulo e Amsterdam, e ninguém havia comprado o assento 22B, que ficava entre a suspirante e melancólica mulher da janelinha (no caso, eu, Sra. 22A) e o educado e gélido homem do corredor (ao que tudo indica, um holandês, Sr. 22C). Na chegada, ele percebeu meus ridículos esforços para colocar a bagagem de mão no abarrotado compartimento superior, que eu mal conseguia alcançar (nenhum holandês deve ter 1,60m, concluo), e disse gentilmente “I try”, ao que eu agradeci e aceitei prontamente. Aeromoças lindas, loiras e sorridentes passavam pra lá e pra cá, eu suspirei e disse bye bye Brasil, o avião decolou, eu não comi nada e não liguei a TV uma vez sequer durante toda a viagem. Não queria saber em que latitude e longitude estava, não queria assistir nenhuma comédia nova, nem jogar Tetris, nem comer suflê. Só queria dormir e lembrar. Ajustei o horário do meu iPod para GMT+1:00 Madrid e dei um play.

Hoy en mi ventana brilla el sol
Y el corazón
Se pone triste contemplando la ciudad
Porque te vas


Tive sorte. Eu só tinha coisas boas pra lembrar e nenhum cotovelo ao lado pra me cutucar. E quando o avião pousou em Amsterdam, de modo quase imperceptível, deslizando pela pista até parar suavemente, na melhor aterrissagem da minha vida, eu pensei: ah, esse é braço.


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Cría Cuervos, Carlos Saura

Porque te vas, Jeannete