31.7.11

Morar fora e outras peripécias


Falou-se sobre isso aqui: http://bit.ly/rdCGgc

Em todo caso, vai também o copy+paste.

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Para a série Fragmentos Internacionais deste mês, convidei Daniela Santi, gaúcha que mora em Barcelona há alguns anos com o namorado e a filha.  

Super criativa e com uma paixão transcendental pelas palavras, Dani conseguiu me deixar confuso (risos). Fiquei por horas pensando em intervir ou não no texto enviado por ela para compor a entrevista. Até que, de repente, tive a ideia de publicar do jeito que veio. Pra que modificar? Leiam e entendam por quê. 

“Em fevereiro de 2007, vim fazer um curso de espanhol de 2 meses em Barcelona e nunca mais voltei.

Eu trabalhava como redatora criativa em Porto Alegre. O dia-a-dia das agências de publicidade é puxado. Depois de quase 10 anos, senti necessidade de dar um respiro. Morar fora foi a primeira opção.

A ideia inicial era ficar 3 meses em algum país da Europa, mas eu sabia que, quando botasse o pé aqui, não iria querer voltar tão cedo. E assim foi.

Eu vim com meu namorado, e a gente escolheu Barcelona por vários motivos. O clima foi um deles. Barcelona é uma cidade ensolarada, com as 4 estações bem definidas, exatamente como Porto Alegre. Por outro lado, tem algo que a gente sempre lamentou que Porto Alegre não tivesse: praias. Neste ponto, fomos bastante oportunistas (risos).  Achávamos que em Barcelona nossa adaptação seria mais rápida, até pelo idioma. Brasileiro pensa que dá para tirar o espanhol de letra, mas não é bem assim. Além do mais, o espanhol é o segundo idioma de Barcelona. Catalão fala catalão. Imagina a gente chegando aqui e ouvindo coisas como: “Com va això” Com et dius? Sisplau...”. O catalão me pareceu uma língua estranhíssima, impossível de entender, uma espécie de latim pós-moderno falado por crianças vindas do futuro (risos).

O nacionalismo dos catalães foi uma das coisas que mais nos surpreendeu. Há uma rivalidade fortíssima entre Madrid e Barcelona. Na época do Franco, era terminantemente proibido falar qualquer outro idioma que não fosse o espanhol. Muitos catalães ainda associam o espanhol com o fascismo. A Espanha passou por uma guerra civil terrível e viveu numa ditadura militar durante 30 anos. As lembranças dessa época ainda estão muito vivas. A sombra do fascismo paira sobre esse país. É um país dividido e desunido, de um jeito que para um brasileiro é difícil de entender. Para os catalães, a Catalunha é o seu país. Eles chamam o governador de presidente. A pressão política para desvincular-se da Espanha está cada dia maior.

Há uma forte imposição do catalão, que eles chamam de "normatização linguística". Os comerciantes são multados se sua fachada não estiver em catalão, 80% das peças de teatro são em catalão, não sei quantos por cento dos filmes têm que estar dublados ou legendados em catalão. Nas universidades, mesmo com a presença massiva de estudantes estrangeiros, as aulas têm de ser em catalão. Nas escolas, nenhuma criança pode ser alfabetizada em espanhol. É uma loucura. O nacionalismo cresceu muito nesses anos de crise. A palavra "catalão" é uma das mais pronunciadas pelos catalães (risos). Somos bombardeados com esse assunto do idioma o tempo todo.

Os catalães, em geral, são educados, reservados, um pouco frios, mas têm um senso de humor que me agrada. Já os garçons e atendentes não têm senso de humor algum. Me custa um pouco lidar com a rispidez e a falta de calor humano no dia-a-dia. Ser atendida num bar e no supermercado são verdadeiros testes para o caráter (risos). A gente até esquece o que é ser bem tratado. A primeira vez que entrei no Cantinho Brasileiro (um bar brasileiro bem conhecido aqui), a moça me gritou do balcão, toda simpática: “Oi, minha rainha!”. Quase chorei (risos). Outra coisa com a qual não consigo me acostumar é a “siesta”. A Espanha não funciona das 2 às 5, mas eu sim. A gente costuma dizer que é melhor não ter um infarto das 2 às 5, pois até motorista de ambulância vai pra casa descansar (risos).

De resto, é muito bom poder ir pra lá e pra cá de bicicleta, ter tanta oferta artística e cultural, morar numa cidade bela, em que os serviços funcionam e existe um mínimo de segurança. O problema da violência no Brasil é algo que me afeta muito. A gente se acostuma a viver com medo, e isso é péssimo. Poder andar tranquilamente a pé à noite, por exemplo, não tem preço. É como a vida deve ser. Meu pai me disse no telefone esses dias: “eu gostava tanto de passear a pé à noite...”. A segurança é algo que pesa muito na balança pra mim, pois agora eu tenho uma filha.

A Sofia nasceu em março desse ano. Ainda é muito pequena, estou amamentando, então a minha rotina tem girado em torno dela. Como trabalho por conta, não tive licença-maternidade, apenas diminuí o ritmo. Eu e meu marido temos um estúdio de web+design chamado Lunes Creativo. Foi algo que aconteceu naturalmente, já que ambos somos publicitários e moramos num país com 20% de desemprego (risos). 

Como diz o ditado, em tempos de crise, enquanto uns choram, outros vendem lenços. Descobrimos que não há emprego, mas há trabalho. Há muitas PYMES (“pequeñas y medias empresas”) precisando de apoio criativo, artistas e profissionais liberais querendo divulgar seu trabalho na web... a gente entrou nessa brecha.

Moramos no Born, em frente ao Museu Picasso, numa das ruas mais antigas da cidade. É o epicentro da agitação turística, mas nosso dia-a-dia é tranquilo. A gente trabalha em casa e leva basicamente uma vida de bairro, com supermercados, restaurantes, galerias de arte, bibliotecas, parque, praia, tudo pertinho... Todo dia fazemos algum passeio com a Sofia. Gosto de ir à universidade e me perder dentro da biblioteca. De ir à praia durante a semana, que é mais tranquilo. Ao Parque da Ciutadella, que é aqui ao lado. De sair pra tomar uma “clara” numa “terraza” no final da tarde. De receber e visitar os amigos. De andar de bicicleta à noite, ir a galerias de arte, andar sem rumo e fotografar... Mas também há dias em que mal saio de casa, a Sofia me absorve muito, e o tempinho que sobra eu tiro pra escrever. Dizem que quando o bebê dorme, a mãe deve aproveitar para dormir também, mas eu aproveito para escrever (risos).

Minha história com as palavras começou cedo. Fui uma leitora precoce. Desde muito pequenininha tinha obsessão por ler e escrever. Quando tinha 4 anos, minha mãe me levou à escola para me matricular no “pré”. Alguém havia me dito que no pré-escolar só se desenhava, e eu fiquei apavorada (risos). Pedi para a diretora da escola para entrar na 1ª série. Mostrei a ela que já sabia escrever meu nome, algumas palavras. Ela achou um desperdício eu fazer o pré, e aos 5 anos eu comecei a estudar. Meus pais contam que, 3 meses depois de entrar na escola, eu já tinha lido toda a Cartilha da Mimi. A partir daí, me tornei uma leitora compulsiva. Deixava de brincar para ler, e não tinha quem me convencesse a parar. Tentaram de tudo, até dizer que eu ia ficar louca (risos). Ainda criança, escrevia escondida até altas horas da madrugada. Mentia que tinha medo do escuro para dormir com a luz acesa e poder escrever. Dormia com o diário embaixo do travesseiro. Tenho pilhas de diários guardados, de toda a minha adolescência. Jamais me passou pela cabeça publicar alguma coisa. Foi uma amiga escritora (Manoela Sawitzki) quem começou a me alfinetar...

Nos primeiros anos de Barcelona, contávamos a nossa experiência de morar fora em um blog (http://www.amitampoco.blogspot.com). Várias pessoas que vieram morar aqui chegaram até nós, através do blog. Na época, eu também escrevia poesias. Descobri que o melhor lugar para escrever poesias eram os trens. Tenho várias poesias que nasceram em movimento, em algum lugar entre Barcelona e França, entre Florença e Roma... Em 2008, ganhei uma Menção Honrosa no Prêmio Cidade Belo Horizonte com um volume de poesias. Logo depois, fui convidada para participar de um projeto muito bacana, uma coletânea de contos inspirados em músicas da Legião Urbana. “Como se não houvesse amanhã” foi publicado em 2010 pela Editora Record e já está na 3ª edição. Recentemente, o meu conto, “Será”, foi solicitado para ser incluído no material didático de 28 escolas.

Como leitora, tenho fascínio pelos grandes personagens. Meu livro de cabeceira é Dom Quixote. Também admiro muito a capacidade de contar histórias à moda antiga. “As mil e uma noites” é uma joia! Viveria tranquilamente em uma aldeia ouvindo o ancião da tribo contar histórias em volta da fogueira (risos). Gosto de mistério e senso de humor, de sentir que o autor criou a obra intuitivamente, sem formalismos. Entre os escritores que mais gosto estão Paul Auster, Nabokov, Turgueniev, Virginia Woolf, Miranda July. Com a Clarice Lispector é diferente, tenho ciúmes, estou certa de que ela me pertence (risos).

Viver em Barcelona nos fez aprender a lidar com o imprevisível e tirar proveito dele. Quase nada do que nos aconteceu aqui foi planejado, nem mesmo a Sofia. Nós somos a prova viva da teoria do caos (risos).  

Quando vim pra cá, só sabia que queria mudar de ares e ter mais tempo para escrever. Não imaginava, por exemplo, que iria estudar cinema.  

Apenas 3 meses depois de chegar a Barcelona, estava escrevendo um roteiro de curta-metragem com uma amiga argentina e um amigo catalão, uma comédia de humor negro, cuja ação se passa num velório. Esse roteiro foi selecionado para ser produzido e, de repente, eu estava atrás de uma câmera, dirigindo 13 atores. Paralelamente a isso, comecei a fazer um doutorado em teoria cinematográfica na Universitat Pompeu Fabra. Nos anos seguintes, rodei mais dois curtas, fechando uma espécie de trilogia. Meus curtas têm em comum o humor negro e um indisfarçável amadorismo (risos). O último, que ainda estou editando, tem um toque de terror. O elenco é todo infantil. Eu fiz o roteiro com as crianças e rodei de maneira totalmente improvisada, era essa a ideia. Foi um caos (risos). Terror e comédia são temas da tese que estou escrevendo para o doutorado. É uma investigação sobre o imaginário cinematográfico que une duas das coisas que mais gosto no cinema: Charlie Chaplin e Expressionismo Alemão. Eu sou fascinada por Chaplin. O único porta-retrato que tenho em casa é de uma foto do vagabundo (risos).

Eu morei uma época numa praia da Espanha (Tossa de Mar). Eu tinha o hábito de ler todo dia, sentada no mesmo banco... Um dia, um desconhecido veio até mim e me entregou uma pilha de papéis. Eram 30 desenhos. Ele tinha me desenhado durante dias, sem eu perceber. Em todos os desenhos, eu estou lendo. Achei legal essa história porque esse desconhecido, que eu jamais voltei a ver, captou com muita precisão a minha alma... Muitas vezes, como agora, escrevo com uma mão só, e com a outra seguro a mão da Sofia. Estou absolutamente encantada de ser mãe, apesar de às vezes estar exausta. Sinto falta do apoio e do afeto da família.  

Saudade é um tema recorrente na vida de quem mora fora. Vou todo ano ao Brasil, mas ainda assim o coração reclama. Criamos um problema insolúvel: quando estamos aqui, queremos estar lá, quando estamos lá, queremos estar aqui. É como ter dois corações. Porto Alegre é a nossa terra, e Barcelona eu não sei o que é, mas não nos deixa ir embora (risos)”.


Matéria de Igor Zahir para o site leiamoda.com.br